Felicidade
e imperativo categórico no pensamento de Immanuel Kant
Por
volta de 1762, o pensador franco-suíço Jean-Jacques Rousseau
escreveu aquele que é um dos seus principais trabalhos e que se
consagrou um clássico do iluminismo, a obra O Contrato Social. A
ideia do “bom selvagem”, já iniciada por Montaigne1,
ganha o coração dos mais céticos até então entorpecidos pelo
naturalismo newtoniano e pela matematização leibniziana que cobriu
a Europa na Era da Razão. Na França, Luís XVI chega ao poder;
Cavendish e Priestley avançam nas pesquisas com o hidrogênio no
Reino Unido; e, em Konigsberg, na Alemanha, ou melhor, na antiga
Prússia, o filósofo Immanuel Kant publica a impactante Crítica da
Razão Pura (1781).
Kant
viveu o momento empolgante e inédito de promulgação dos direitos
civis alinhando-se com a filosofia de Thomas Hobbes no âmbito
político2.
Defendeu uma ética pautada em regras e, portanto, em preceitos
morais – mantendo desconfiança em relação à boa inclinação
natural dos homens. Sua reflexão difere da virtude aristotélica
como modelo de conduta e abstrai a validade das leis morais a um
nível descomunal desenvolvendo uma metafísica específica para se
referir à ética.
“Tudo
na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de
agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios,
ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é
necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão
prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações
de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias,
são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a
faculdade de escolher só aquilo que a razão independentemente da
inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer
bom”3.
No
conflito das ideias transcendentais, Kant propõe que a causalidade
advinda das leis da natureza não é a única via por onde se pode
conhecer os fenômenos do mundo, pois, no caso do homem, por exemplo,
elemento da natureza e do conhecimento, essa cadeia causal se
expressa de outra maneira. Qual seja, através da representação, ou
da ética, mas uma ética diferente da tradicional. Porque a ética
em si, de acordo com o filósofo alemão, não leva à felicidade. O
que pode ser considerado bom para um indivíduo pode não ser ao
outro.
Isso
porque os fenômenos da natureza são identificáveis através de sua
causalidade, mas na natureza humana existe a causalidade pela
liberdade que não vai ao encontro de certos determinismos. Em Kant,
a razão produz uma maneira de querer específica, que é o querer
ético, em outras palavras: a vontade. Porém, uma vontade que tem de
ser voltada para o universal, assim como para o bem e o dever, pois é
deontológica, e não teleológica como em Aristóteles.
De
tal modo, surge a proposta kantiana de tratar o próximo sem
caracterizá-lo como um meio, mas como um fim em si. A ideia é
superar o homem enquanto tensão com a natureza conduzindo-o além da
civilidade à moralidade – na qual a sociabilidade insociável o
distancia. Na perspectiva histórica, Kant é filho do iluminismo e,
conseqüentemente, depositário da razão. É através dela, acredita
o filósofo alemão, que podemos responder às perguntas que dizem
respeito a legitimação de nossas ações.
Contudo,
há o conflito entre a razão pura e a razão prática, entre os
princípios a serem adotados no âmbito das regras particulares ou
gerais. Daí nasce a divisão entre as máximas subjetivas e os
imperativos universais.
Nesse
último caso, a ética esbarra primeiramente nos meandros do desejo,
da destreza, técnica, problemática e prudência, ou seja, no campo
do imperativo hipotético, para elevar-se até o valor de modo
universal e necessário que é o dever ser4
(söllen), a boa vontade, ou o imperativo categórico. De acordo com
o filósofo Rawls, “Por imperativo categórico Kant entende um
princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua
natureza de ser racional igual e livre.5”
A
defesa da autonomia da lei moral, colocando a boa vontade no patamar
de máxima universalmente legisladora, rompe com os alicerces da
ética tradicional cujo entendimento se fazia através de princípios
como a vontade de Deus, a ciência natural e o sentimento moral, ou
de conceitos como o de harmonia e perfeição (matemática). Do ponto
de vista crítico, a exemplo da análise feita por Bertrand Russell,
a boa vontade kantiana como caminho incondicional para se chegar a
verdadeira felicidade é uma opinião radical e que pode ser
considerada um tanto austera. “Tudo se converte numa série de
deveres bastante desagradáveis e enfadonhos, executados não por
desejo, mas por princípio. Quem os executa é a boa vontade, a única
considerada incondicionalmente boa”6.
Russell
identificou no imperativo categórico uma série de conseqüências
muitas vezes impertinentes e teceu os mesmos comentários em relação
ao panfleto “A Paz Perpétua”, publicado em 1795. Contudo, o
filósofo britânico não deixou de ressaltar que as duas ideias
fundamentais expostas no panfleto, a de governo representativo e de
federação mundial, deveriam ser efetivamente recordadas “nos
nossos dias”7,
tendo em vista a concordância na sociedade contemporânea de que a
busca pela felicidade deve se fazer através de princípios morais.
Bibliografia
Coleção
Os Pensadores. Montaigne, Nova Cultural, São Paulo. 1991.
Coleção
Os Pensadores. Hobbes, Nova Cultural, São Paulo. 1999.
JAPIASSÚ,
H; MARCONDES, D. Dicionário
básico de filosofia.
3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KANT,
Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Tradução: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995.
RAWLS,
John. Uma
Teoria da Justiça.
Tradução: Almiro Pisseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
RUSSELL,
Bertrand. História do
Pensamento Ocidental.
Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.
1Ensaios,
capítulo XXXI, Dos Canibais.
2“Tudo,
portanto, que advém de um tempo de Guerra, onde cada homem é
Inimigo de outro homem...”. O Leviatã, Parte I, capítulo XIII.
3Fundamentação
da Metafísica dos Costumes, p. 47.
4“É
o dever mesmo que é o bem, não tendo outra justificativa senão
ele mesmo”. Dicionário Básico de Filosofia, pág. 69.
5Cf.
John Rawls, em Uma Teoria da Justiça, pág. 277.
6Cf.
Russell, em História do Pensamento Ocidental, pág. 349.
7Idem,
pág. 350.
* Texto apresentado na disciplina Ética e Cidadania II, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.