quarta-feira, outubro 29, 2014

A verdade mata*

Em "Giordano Bruno", diretor italiano mostra os últimos passos do filósofo renascentista

Religião, política, sexo e ciência. Esses são os principais ingredientes que compõem a elegante e fluvial Veneza, na Itália, na transição do século XVI para o XVII, quando as chamas das fogueiras da Inquisição começavam a se apagar. Epicentro cultural, artístico, comercial, naval e político-religioso, a cidade foi literalmente o destino – final – do frade, filósofo, escritor e astrônomo, Giordano Bruno, cuja vida foi retratada de maneira preciosa na produção de Giuliano Montaldo, de 1973.

Dono de uma sabedoria única, Giordano Bruno construiu uma história que por si só tornou-se sinônimo de spoiler1 uma vez que o seu trágico desfecho (na fogueira em Roma) é de conhecimento geral. No entanto, são os motivos que o levaram à condenação que servem de costura para a trama engenhosa montada pelo diretor italiano.

O filósofo foi bastante polêmico. Considerava que o mundo era um organismo vivo, harmônico, infinito e constituído de outros mundos completamente desconhecidos do ser humano. Criticou o geocentrismo aristotélico e defendeu o heliocentrismo demonstrando com fatos matemáticos que a Terra e os demais astros do sistema solar giravam em torno do Sol. Acreditava na metempsicose, ou seja na transmigração das almas, numa clara influência do pitagorismo. Entendia que todo filósofo é dono do próprio destino e que todas as pessoas têm a capacidade e o direito de filosofar. “Não existe diferença entre o Papa e um artesão, todos os homens são iguais”, escreveu Bruno.

Após percorrer as principais nações européias, o filósofo foi à Veneza e se hospedou na casa de um nobre local interessado em conhecimentos de magia. Nessa época, Giordano Bruno já era muito respeitado como cientista, porém visto como mago. Há também quem enxergasse nele a verdadeira encarnação do diabo, apesar de que – sem levar em consideração o nobre que o acolheu e os condenados pela Inquisição – ninguém ousou denunciá-lo.

Ainda em Veneza, Bruno foi julgado e obrigado a abjurar de suas ideias e filosofia, o que não passou de uma estratégia para continuar livre e pensante. Embora revolucionária, sua nova visão do cosmo e do Homem fez com que obtivesse o apoio de membros do clero que sinalizaram favorável a sua liberdade desde que as ofensas à Igreja fossem retiradas de suas obras. Bruno recuou, não abriu mão de seus princípios e acabou enviado à Roma – que se adiantava de todas as maneiras para tentar queimá-lo.

Ateísmo, blasfêmia, conspiração, heresia, traição, foram algumas das justificativas utilizadas para enviá-lo à fogueira. Isso sem falar na atuação política do filósofo que o diretor Montaldo expôs de forma brilhante. Durante o diálogo com os religiosos que o condenavam, Bruno refutou a crítica de um clérigo aos sistemas políticos de Estados como a França, Inglaterra e Alemanha, alegando que fora justamente os cristãos que ensinaram aos “novos” políticos como administrar as finanças e controlar o povo a partir da religião. “Por isso, esses Estados se dizem laicos e permitem todas as religiões”.

Antes de ser levado ao espetáculo de Campo de Fiori, Giordano Bruno ainda lançou dúvidas em relação à Santíssima Trindade agostiniana, na qual alegava ser incompreensível, denunciou as mazelas sanguinárias da Igreja associando tais atitudes com superstição, ignorância e violência, e não deixou de fixar suas concepções sobre a matéria, a forma, o universo e o todo.

O filme também aborda um aspecto importante na personalidade de Bruno, que é o seu caráter orgulhoso. O diretor deixa bem claro em diversas passagens que o filósofo poderia ter sido mais brando em comportamento, mas o espírito de liberdade o impedia de resignar-se. Sendo assim, não restou-lhe outro caminho se não o do “microondas” no fatídico 8 de fevereiro de 1600 e a conseqüente proibição de seus livros – o que não impediu toda a reforma que ocorreu na política e na ciência nos anos seguintes.

Por fim, vale destacar a trilha sonora da película composta com maestria pelo genial Ennio Morricone que uniu a pegada western macarrônica com o ponto fúnebre dos cantos celestiais. É assim que a verdade continua sendo dita. Ora pro nobis.


1Spoiler é um palavra de origem inglesa que significa basicamente “estraga-prazeres”, no que diz respeito à pessoa que revela intencionalmente o final de uma história inédita. Em português pode ser relacionada com o termo Espoliação ou com o verbo Esbulhar, conforme o dicionário Uol Michaelis. Fonte: http://www.tecmundo.com.br/youtube/2459-o-que-e-spoiler-.htm e http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=esbulhar, último acesso 25/05/2014.

* Texto apresentado na disciplina Oficina de Leitura e Produção de Texto Acadêmico, no 1° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.  

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