quinta-feira, outubro 30, 2014

Dois pesos, duas medidas*

O bem supremo aristotélico como finalidade do Estado frente ao cidadão

            Na metade do século IV a. C., os primeiros vestígios de declínio da aclamada democracia ateniense[1], o sofismo predominante e a expansão alexandrina alcançando bárbaros, exigiram do filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) a tarefa de pensar a questão grego-política por meio do viés analítico – tão caro ao seu projeto de investigação filosófica. A pergunta a ser respondida era: “Qual o melhor sistema de governo?”.

Ainda que o Estagirita mantivesse a busca pelo bem supremo como fim maior da organização social, seu raciocínio tomou rumo oposto ao dos pré-Socráticos e ao de Platão – esse, sim, um genuíno cidadão grego –, ao elaborar um conceito de justiça que extrapolou a tradição helênica e o ideário constituído na República. Para os contemporâneos e sucessores de Tales de Mileto, os deuses; para Platão, começar do zero expulsando poetas e coletivizando mulheres e crianças; para Aristóteles, é preciso fazer “ciência” e enxergar a política de forma mais completa.

Segundo o filósofo, o exame da matéria política deve deixar o plano da generalização, da ideia de que os seres humanos (cidadãos) são todos iguais, e tem de passar pelo princípio de análise em virtude de sua natureza diversa tal qual os demais objetos do conhecimento.

“Acostumamo-nos a analisar outras coisas compostas até que não possam mais ser subdivididas; façamos o mesmo com o Estado e com as partes que o compõe; e entenderemos melhor as diferenças entre um e outras, e se podemos deduzir algum princípio de funcionamento das diversas partes”. (Política, I, 1, 3)

Esse princípio de funcionamento é o que define o arquiteto enquanto construtor de casas, o marceneiro enquanto fabricante de cadeiras, o médico enquanto especialista em saúde. Todo cidadão, de acordo com Aristóteles, antes do caráter político, tem sua predisposição natural a determinadas habilidades[2]. Conciliar essas características (diferenças) com a inclinação para o convívio social, mantendo o equilíbrio e a harmonia necessárias, é o norte que a política deve seguir. A garantia do bem comum ao cidadão é a garantia do bem comum ao Estado, ou seja, a virtude.

Reta Justa

Aristóteles entende que só é bom (justo) aquilo que faz bem a todos. Por isso, os extremos devem ser evitados e a medida certa (meio-termo) empreendida. Aqui notamos aquilo que Reale[3] vai classificar como uma crítica ao comunismo platônico, uma vez que o Estagirita sinaliza que um governo do povo privilegiaria somente uma camada social. Sendo assim, na Política, três são as formas de governo ideais: a monarquia, a aristocracia e a politeia. 

“Antes de mais nada, é preciso dizer que as três formas de governo, quando exercidas com retidão, são naturais e portanto boas, porque o bem do Estado consiste em visar o bem comum”.
(Introdução à Aristóteles, cap. VI, pág. 133).

E três, são as formas ilegítimas: a tirania, a oligarquia e a democracia (vista como privilégio de apenas uma classe). Porque essas últimas estão fora de ordem, são desmedidas. Profundo conhecedor de outras cidades e regiões, Aristóteles entendia que apenas em Atenas seria possível a realização da pólis ideal devido ao caráter e à cultura do cidadão grego que automaticamente o eximia de viver sob a tutela de um governo ilegítimo.

Por outro lado, ao decompor o Estado até a família e, depois, até o indivíduo, Aristóteles mostra, conforme aponta Russell, que mesmo no nível mais primitivo de organização existe uma noção de ordem. “Ordem é, antes de tudo, ordem social”[4].

Olhar teleológico

Portanto, é imprescindível compreender que Aristóteles visa fazer conhecimento a partir da ideia de que tudo é composto dentro de uma lógica e constituído de uma determinada finalidade, ou objetivo. Foi assim com a ética, biologia, metafísica e outros temas. Ou seja, a política também guarda as características intrínsecas à sua natureza e tais elementos se compõe buscando um fim ético.

No caso dos cidadãos, enquanto seres que naturalmente tendem ao convívio social[5] e não à exclusão e retidão extrema, esse fim não poderia ser algo que causasse prejuízo, dor e sofrimento, ou tampouco a extinção dos próprios indivíduos.   

Isso significa que a boa sociedade caminha em direção ao seu único objetivo: a felicidade. O Estado ideal, portanto, seria o Estado feliz. Enquanto garantia de manter guardadas as devidas proporções.

Bibliografia

Coleção Os Pensadores. Aristóteles, Nova Cultural, São Paulo. 1999. Política, I, 1; II, 4. Metafísica, I, 1. Ética a Nicômaco, I e II.
JAEGER, W. (1936) Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RAVEN, J. E.; KIRK, G. S.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 8ª ed., 2013.
REALE, GIOVANNI. Introdução à Aristóteles. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.



[1]   Cf. o historiador alemão Werner Jaeger tão bem ilustra no Livro Quarto da sua obra Paideia, a formação do homem grego.
[2]   Aqui encontra-se uma das discussões polêmicas em relação à filosofia aristotélica em razão do conceito de cidadão  que exclui a figura da mulher na sociedade e que contempla a existência de escravos, bem como de pessoas incapazes de se civilizar (bárbaros e estrangeiros).
[3]   Reale, Giovanni, Introdução à Aristóteles, pág 130,136.
[4]   Russel, Bertrand, História do Pensamento Ocidental, pág. 18. 3ª ed.
[5]   ζῷον πoλίτικoν (Zóon Politikon): conceito de animal político, ser social, exposto no livro Política. Assim como o homem tende (finalidade) à sociedade, tende ao saber, como exposto na Metafísica, e por isso à virtude.

* Texto apresentado na disciplina Ética e Cidadania II, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

quarta-feira, outubro 29, 2014

A verdade mata*

Em "Giordano Bruno", diretor italiano mostra os últimos passos do filósofo renascentista

Religião, política, sexo e ciência. Esses são os principais ingredientes que compõem a elegante e fluvial Veneza, na Itália, na transição do século XVI para o XVII, quando as chamas das fogueiras da Inquisição começavam a se apagar. Epicentro cultural, artístico, comercial, naval e político-religioso, a cidade foi literalmente o destino – final – do frade, filósofo, escritor e astrônomo, Giordano Bruno, cuja vida foi retratada de maneira preciosa na produção de Giuliano Montaldo, de 1973.

Dono de uma sabedoria única, Giordano Bruno construiu uma história que por si só tornou-se sinônimo de spoiler1 uma vez que o seu trágico desfecho (na fogueira em Roma) é de conhecimento geral. No entanto, são os motivos que o levaram à condenação que servem de costura para a trama engenhosa montada pelo diretor italiano.

O filósofo foi bastante polêmico. Considerava que o mundo era um organismo vivo, harmônico, infinito e constituído de outros mundos completamente desconhecidos do ser humano. Criticou o geocentrismo aristotélico e defendeu o heliocentrismo demonstrando com fatos matemáticos que a Terra e os demais astros do sistema solar giravam em torno do Sol. Acreditava na metempsicose, ou seja na transmigração das almas, numa clara influência do pitagorismo. Entendia que todo filósofo é dono do próprio destino e que todas as pessoas têm a capacidade e o direito de filosofar. “Não existe diferença entre o Papa e um artesão, todos os homens são iguais”, escreveu Bruno.

Após percorrer as principais nações européias, o filósofo foi à Veneza e se hospedou na casa de um nobre local interessado em conhecimentos de magia. Nessa época, Giordano Bruno já era muito respeitado como cientista, porém visto como mago. Há também quem enxergasse nele a verdadeira encarnação do diabo, apesar de que – sem levar em consideração o nobre que o acolheu e os condenados pela Inquisição – ninguém ousou denunciá-lo.

Ainda em Veneza, Bruno foi julgado e obrigado a abjurar de suas ideias e filosofia, o que não passou de uma estratégia para continuar livre e pensante. Embora revolucionária, sua nova visão do cosmo e do Homem fez com que obtivesse o apoio de membros do clero que sinalizaram favorável a sua liberdade desde que as ofensas à Igreja fossem retiradas de suas obras. Bruno recuou, não abriu mão de seus princípios e acabou enviado à Roma – que se adiantava de todas as maneiras para tentar queimá-lo.

Ateísmo, blasfêmia, conspiração, heresia, traição, foram algumas das justificativas utilizadas para enviá-lo à fogueira. Isso sem falar na atuação política do filósofo que o diretor Montaldo expôs de forma brilhante. Durante o diálogo com os religiosos que o condenavam, Bruno refutou a crítica de um clérigo aos sistemas políticos de Estados como a França, Inglaterra e Alemanha, alegando que fora justamente os cristãos que ensinaram aos “novos” políticos como administrar as finanças e controlar o povo a partir da religião. “Por isso, esses Estados se dizem laicos e permitem todas as religiões”.

Antes de ser levado ao espetáculo de Campo de Fiori, Giordano Bruno ainda lançou dúvidas em relação à Santíssima Trindade agostiniana, na qual alegava ser incompreensível, denunciou as mazelas sanguinárias da Igreja associando tais atitudes com superstição, ignorância e violência, e não deixou de fixar suas concepções sobre a matéria, a forma, o universo e o todo.

O filme também aborda um aspecto importante na personalidade de Bruno, que é o seu caráter orgulhoso. O diretor deixa bem claro em diversas passagens que o filósofo poderia ter sido mais brando em comportamento, mas o espírito de liberdade o impedia de resignar-se. Sendo assim, não restou-lhe outro caminho se não o do “microondas” no fatídico 8 de fevereiro de 1600 e a conseqüente proibição de seus livros – o que não impediu toda a reforma que ocorreu na política e na ciência nos anos seguintes.

Por fim, vale destacar a trilha sonora da película composta com maestria pelo genial Ennio Morricone que uniu a pegada western macarrônica com o ponto fúnebre dos cantos celestiais. É assim que a verdade continua sendo dita. Ora pro nobis.


1Spoiler é um palavra de origem inglesa que significa basicamente “estraga-prazeres”, no que diz respeito à pessoa que revela intencionalmente o final de uma história inédita. Em português pode ser relacionada com o termo Espoliação ou com o verbo Esbulhar, conforme o dicionário Uol Michaelis. Fonte: http://www.tecmundo.com.br/youtube/2459-o-que-e-spoiler-.htm e http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=esbulhar, último acesso 25/05/2014.

* Texto apresentado na disciplina Oficina de Leitura e Produção de Texto Acadêmico, no 1° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.