Apesar da pressão social e comercial, a procura por bons romances
não diminuiu*
Autor: Inci Aral**
O mundo literário parece conviver com o receio contínuo em relação
ao futuro do romance – uma questão que, se está morta ou não,
ainda continua causando barulho regularmente. O romance, tal como o
conhecemos hoje, surgiu com a publicação de Dom Quixote, de
Cervantes, e atingiu o auge nos séculos 18 e 19. As primeiras
inquietações a respeito do “futuro” surgiram nas eras de
Flaubert, Stendhal e Austen, e já previam o tal fim. Não faltou
quem esperasse literalmente o anúncio do funeral, mas o romance, não
todos, é claro, resistiu e continua resistindo até hoje. E vive
bem, em alta, forte e tão fértil como nunca.
Facsímile da primeira edição de Dom Quixote (Domínio Público-Wikimedia)
O romance representa a arte de explorar a vida humana. Reflete a
natureza do Homem, a alma das sociedades e o espírito de vida das
cidades. Os grandes romancistas criam obras que não são pertinentes
apenas aos seus próprios países, conforme a linguagem por atacado
da história, mas trabalhos de importância global que apresentam
outros pontos de vistas que não os estabelecidos, onde são
empregados os mais elevados princípios para se escrever discursos
épicos sobre os períodos mais tumultuados da humanidade.
É triste para um amante da ficção imaginar a morte do romance ou,
necessariamente, o seu próprio fim. Felizmente, não há motivos
para isso. Desde que o mundo progride em passos largos a partir da
era industrial, o romance tem sido conduzido firmemente para
acompanhar as ordens do dia. Se tal forma de arte tão influente
tivesse que se apagar nós também teríamos que abandonar as
esperanças com relação a outras belezas e tesouros da criação
humana.
Cada vez se fala mais do futuro do romance do que do romance em si.
Será que isso acontece porque agora existe mais liberdade do que no
passado? Hoje em dia, tudo é possível. Além dos estilos e das
próprias narrativas, o romance não tem limites e, por isso, nunca
cessou de procurar por novidades. E se deve ser encontrado no meio
digital novos campos para a sua existência, então isso acontecerá
em paralelo com a versão impressa, o que permitirá ao romance
evoluir para algo novo e completamente diferente.
A maioria dos leitores atuais está em frente da tela. Nos países
desenvolvidos menos da metade dos adultos lêem romances, e o número
de leitores, especialmente entre os mais jovens, está em ligeira
queda. O computador é usado para tudo, entretenimento, estudo,
leitura, compras até como forma de se expressar individualmente, e
assim tornou-se parte fundamental da vida diária das pessoas.
Entretanto, o fato de que os leitores encontram cada vez mais o que
precisam na frente das telas não significa que eles vão parar de
ler. A queda no número de leitores deve ser atribuída à batalha do
papel versus o digital e à conveniência da situação. Ao mesmo
tempo em que a leitura digital vem se difundindo, o romance pode
emergir vitorioso desse processo.
Na Turquia, são publicados em média 500 romances todos os anos,
sendo que a maior parte deles são inéditos. Em 2012, esse número
saltou para exatamente 780. As livrarias na Turquia estão lotadas de
belos livros e de jovens ávidos por leitura. Na internet encontra-se
uma grande quantidade de livros, revistas literárias, websites e
fóruns com debates intensos sobre literatura. Em resumo, o interesse
por romances permanece expressivo. Mesmo que em um futuro próximo a
tecnologia continue a desenvolver e se inventar ainda assim os
romances serão escritos utilizando-se de atrativos e apelos que nós
não poderíamos nem imaginar.
Seria o romancista digital do futuro alguém dotado de malandragem,
consideravelmente emotivo ou um insensível quebrador de regras? Eu
não sei. Meu receio é que a intensidade e o conteúdo sofram em
nome da técnica e que a alma dos romances se perca. Desde que a
tecnologia tornou nossa vida mais dinâmica, o mundo digital tem sido
o símbolo da inteligência. Isso mudou a nossa maneira de ver,
sentir e pensar. O mundo sobre o brilho da técnica esteriliza todo
tipo de processo imaginativo e paralisa a nossa própria voz. Além
do mais, isso brinca com os nossos desejos. O resultado final é que
o romance, queiram ou não, será forçado a entrar cada vez mais em
um contexto limitado. De resto, a internet ainda não desenvolveu uma
linguagem distinta o bastante no que diz respeito à arte de escrever
um romance, apesar de que esse ponto é altamente possível de ser
atingido em pouco tempo.
Na minha opinião, um dos problemas que ameaçam o futuro do romance
é a uniformidade imposta pelas condições de mercado. Editores, de
olho nas vendas, arriscam suas fichas em romancistas promissores
inclinados a escrever sobre literatura barata que aborda
espiritualidade, sexo ou assuntos banais do momento. São escritores
incentivados a trabalhar gêneros fúteis, como o misticismo, e a
transformar o romance em uma sensação do momento. Esses livros
“fast-food” vendem milhões no mundo todo, quando milhares de
romances de alta qualidade são relegados ao pó nas prateleiras.
Não resta dúvida de que nunca foi fácil dividir a linha entre o
bom e o ruim. Os leitores escolhem um romance de acordo com o seu
perfil. De qualquer modo, a publicidade agressiva e a pressão da
cultura popular de massa têm sido determinante na escolha do leitor.
O escritor que se adequa ao mercado pode se tornar bem sucedido
embora não consiga impedir que o seu trabalho seja explorado e
pirateado na internet. A luta contra a pirataria na Turquia não tem
avançado muito. Aqui esse não é um assunto exclusivo às grandes
cidades, livros impressos ilegalmente são vendidos abertamente nas
livrarias de Anatolia e romances são baixados sem qualquer
permissão.
Durante o encontro Edinburgh World Writers', o escritor China
Miéville sugeriu que, afim de garantir a integridade do Estado,
fosse destinado salário aos escritores. Para nós, isso
parece piada. Enquanto ainda existir em nosso país a mentalidade de
censurar escritores, de atirá-los na prisão, de abrir casos
judiciais contra a organização PEN e de considerar perigosos
clássicos como Ratos e Homens, de Steinbeck, será impossível aos
romancistas viver dentro de um estado que deveria proteger e lutar
pelos seus direitos.
Apesar de tudo, o romance e a psicologia individual continuam muito
importantes. Escritores consagrados ainda são premiados e
respeitados. Existe também grande procura por cursos e oficinas de
escrita criativa. Escrever um romance se tornou o grande sonho para
algumas pessoas. Estamos cercados de novas surpresas em narrativas,
estruturas e linguagens. O mundo do romance é tão fértil e
fascinante que se mantém em pé diante o domínio da imagem.
No entanto, a perspectiva para o futuro é nebulosa. O que os seres
humanos esperam para o planeta? Como acabar com a crise econômica?
Será que uma outra guerra mundial está prestes a ocorrer? Nessas
situações o escritor pode se manter retraído no seu próprio
mundo, indiferente aos eventos ao seu redor? Seria possível fechar
os olhos e se desligar de tudo que estaria acontecendo? A resposta é
sim e não. E nesse caso, podemos dizer que o espírito político do
nosso tempo não se refletiu o bastante nos romances. Quando a
indiferença e a recreação são a natureza das notícias, a
política é vista com desprezo estimulando uma existência à parte
movida por exemplos negativos e obsoletos.
Seja qual for o regime opressivo em questão, nós não podemos
endossar a censura e a perseguição aos escritores, seja através do
exílio ou do atentado contra suas vidas transformando-a em uma
existência silenciosa. Para garantir que haja livre expressão, nós
devemos sentir total desprezo pelas proibições e restrições
impostas aos escritores.
A literatura e o romance estão sobre o controle de várias pressões
discretas; certos assuntos são boicotados e transformados em uma
cópia do aceitável pela mídia antes de serem publicados. É muito
bom que escritores notáveis no mundo todo, de todas as idades, não
cedam sutilmente à atual exposição e que continuem questionando
com habilidade todo novo plano falso para a nossa felicidade.
Os próximos anos certamente nos dirá, com maior clareza, de que
maneira o que nós estamos plantando atualmente irá afetar na
prática escritores e romances. Qual o rumo que as coisas vão tomar,
qual será a melhor dinâmica e de onde os assuntos vão surgir?
Quanto o marketing, que tanto afeta adversamente a inspiração,
visão e processo criativo dos escritores, influenciará para baixar
o nível das obras? A fim de proteger esse espírito e essa paixão,
e reconquistar a herança perdida no romance atual, será preciso
compreender a vida em todos os seus aspectos, e conhecer todos os
símbolos e sentimentos de dor ao longo dos tempos. Por outro lado,
assim como a queda espiral da humanidade segue desenfreada, o romance
também pode estar nos últimos suspiros.
* Esta é uma versão editada da palestra de Inci Aral na Edinburgh
World Writers' Conference, em Izmir, na Turquia, e foi traduzida para
o inglês por Caroline Stockford, e apresentada na Yasar University e
na British Council. A versão completa de todos as palestras estão
disponíveis na página da Edinburgh World Writers' Conference.
** A escritora Inci Aral nasceu em 1944, na Turquia. Publicou quase 20 livros entre
ensaios, romances e contos.
Fonte: The Guardian
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